(Reflexão sobre a herança da violência colonial e a educação africana)
Há feridas que não sangram, mas que doem há séculos. Feridas abertas na alma de um povo que aprendeu a sobreviver entre a dor e o orgulho, entre a humilhação e a esperança. Nós, africanos, somos herdeiros de uma história feita de resistência, mas também de traumas silenciosos. E um desses traumas continua a viver, escondido, nas nossas casas, nos nossos gestos, na forma como educamos os nossos filhos.
Quantas vezes já ouvimos — ou dissemos — “é assim que se educa”, “apanhei e cresci bem”, “o meu pai também me bateu e fiquei homem”?
Essas frases, ditas com naturalidade, são como ecos do passado. São vozes de séculos de violência que se instalaram na nossa forma de amar. Porque sim, o chicote que outrora rasgou a pele dos nossos antepassados ainda vive dentro de nós. Mudou de forma, mas não de essência.
Hoje, o chicote já não é de couro nem empunhado por um colono. É o cinto, o fio eléctrico, a vara, a palavra dura. É a agressão que damos nos nossos filhos, acreditando que estamos a educar, quando na verdade estamos a perpetuar uma dor que não começou connosco, mas que continua através de nós.
Durante a escravatura, o africano aprendeu que o medo era a única linguagem que o opressor entendia. Aprendeu que obediência se arrancava à força. Que o corpo só se dobrava com pancada. Que disciplina era sinónimo de dor.
E esse ensinamento cruel atravessou gerações. Passou da senzala para a aldeia, da plantação para o lar. O colono bateu no negro, o capataz bateu no escravo, o pai — já liberto, mas ferido — bateu no filho.
E assim, o círculo da dor continuou.
O colonialismo não nos tirou apenas a terra. Roubou-nos também o direito de sermos pais com ternura. Fez-nos acreditar que autoridade e violência são a mesma coisa. Fez-nos confundir respeito com medo.
Mas o medo nunca educou ninguém. O medo apenas cala. O medo apenas apaga o brilho dos olhos das nossas crianças.
Hoje, quando um pai africano levanta a mão para o filho, há uma sombra antiga que o guia. É a sombra do colono, é a voz do feitor, é o eco da humilhação transformado em “disciplina”.
E o mais triste é que fazemos isso por amor.
Amor cego, amor ferido, amor aprendido de quem nunca nos quis livres.
Não é por maldade que muitos dos nossos pais bateram em nós. É porque foi assim que lhes ensinaram a amar. Porque um dia, quando o pai deles lhes bateu, também acreditou que era para o bem.
E é assim que o chicote se transformou em herança.
Mas chegou a hora de quebrar esse ciclo.
Chegou a hora de sermos a geração que liberta não só o corpo, mas também a alma.
Porque a verdadeira libertação de África começa dentro das nossas casas.
Não basta libertar a terra se o coração continua colonizado.
Educar sem bater é um ato de coragem. É um ato revolucionário. É dizer ao mundo: “Eu não serei o reflexo da dor dos meus antepassados, serei o seu sonho.”
É mostrar que aprendemos com o passado, mas não vivemos presos a ele.
É ensinar às nossas crianças que o respeito nasce do exemplo, e não do medo.
Precisamos de reaprender o que é ser pai, o que é ser mãe, o que é cuidar.
Porque cuidar não é dominar. Amar não é castigar. Corrigir não é ferir.
A criança africana precisa de crescer com amor, com palavra, com abraço, com paciência.
Porque o que o colono quis destruir em nós foi exatamente isso — a capacidade de amar sem violência.
Durante séculos, o africano foi tratado como um animal a quem se batia para obedecer.
Agora, sem perceber, repetimos o mesmo gesto com os nossos próprios filhos.
E cada palmada, cada grito, cada agressão é como uma cicatriz invisível que passa de geração em geração.
Não nos damos conta, mas estamos a ensinar aos nossos filhos que o amor dói.
E não há nada mais injusto do que isso.
O amor não deve doer.
O amor africano deve ser força, deve ser cura, deve ser vida.
Quando batemos numa criança, estamos a calar a sua voz.
E cada criança africana calada é uma África silenciada.
Uma África que podia ter inventado, criado, sonhado, mas foi ensinada a obedecer antes de pensar.
E foi exatamente isso que o sistema colonial quis: um povo obediente, e não pensador.
Nós herdámos não só o chicote, mas também o silêncio.
E o silêncio é a prisão mais profunda de todas.
Está na hora de mudar.
Está na hora de ensinar sem medo, de disciplinar com amor, de corrigir com exemplo.
Está na hora de dizer aos nossos filhos: “Não precisas de apanhar para aprender. Eu acredito em ti.”
Porque o amor também educa.
E educa melhor.
É preciso curar as nossas feridas.
É preciso perdoar os nossos pais — não por terem batido, mas por não terem sabido fazer diferente.
Porque eles também foram vítimas.
Foram crianças espancadas por outros adultos feridos, filhos de uma geração marcada pela dor.
Mas nós podemos ser diferentes.
Nós podemos ser a ponte entre o passado e o futuro.
Podemos ser a geração que diz: “Basta.”
A geração que substitui o cinto pelo diálogo, o grito pelo abraço, o medo pela confiança.
A geração que entende que educar é guiar, não castigar.
A verdadeira força africana não está na dureza, mas na ternura.
Porque só quem ama profundamente é capaz de construir uma nação livre.
E só uma criança amada sem medo será um adulto capaz de amar sem violência.
Os nossos filhos não precisam de chicote. Precisam de consciência.
Precisam de ver nos nossos olhos que são respeitados, valorizados e ouvidos.
Precisam de crescer a acreditar que podem ser melhores do que nós fomos.
O colono já se foi.
Mas se continuarmos a bater nos nossos filhos, ele continua a viver dentro de nós.
E nós não lutámos tantos séculos para continuar a fazer o trabalho dele.
Libertar África é também libertar o nosso modo de amar.
É educar com afeto, com sabedoria, com paciência.
É reconstruir a humanidade que nos foi arrancada com o ferro e o fogo.
A escravatura ensinou-nos o medo.
O colonialismo ensinou-nos a submissão.
Mas a liberdade deve ensinar-nos o amor.
Porque o futuro de África depende das crianças — e o futuro das crianças depende de nós.
Se quisermos um continente livre, temos de criar filhos livres.
Livres de medo, livres de dor, livres da ideia de que só se aprende com sofrimento.
Educar com amor é o ato mais revolucionário que um africano pode fazer.
Porque cada abraço dado a uma criança é um golpe no colonialismo.
Cada palavra de carinho é uma vitória sobre a dor.
Cada gesto de paciência é um passo para a verdadeira independência.
O chicote pode ter sido a arma do colono, mas o amor é a arma do africano consciente.
E com essa arma, construiremos o amanhã.