Um silêncio constrangedor paira sobre a declaração feita no Rio de Janeiro. Em pleno 2025, um relator das Nações Unidas profere palavras que ecoam relatos de séculos passados, mas que descrevem uma realidade brasileira contemporânea e alarmante. Tomoya Obokata, Relator Especial da ONU sobre formas contemporâneas de escravidão, após uma visita de onze dias ao país, apresentou um diagnóstico severo: o Brasil, apesar de sua avançada legislação, continua a conviver com níveis elevados de exploração que configuram escravidão moderna.
A fala do especialista vai além de simplesmente apontar falhas pontuais. Ela revela uma ferida estrutural, profundamente enraizada na história nacional. Obokata identifica que as manifestações atuais da escravidão são uma consequência direta dos legados do comércio transatlântico de pessoas africanas escravizadas e do colonialismo. Este é um ponto crucial: a exploração não é um acidente ou um desvio de percurso, mas um padrão que se reinventa, normalizado pela própria sociedade. A população historicamente marginalizada – negra, pobre, periférica – permanece como o alvo principal dessas violações.
O Abismo entre a Lei e a Realidade
O relator reconhece os fortes marcos legislativos, políticos e institucionais que o Brasil construiu para combater esse mal. De fato, o país possui uma das definições mais rigorosas do mundo de trabalho análogo à escravidão, grupos móveis de fiscalização eficientes e um plano nacional de erradicação. No entanto, a persistência dos crimes denunciados pela ONU evidencia um abismo profundo entre o que está escrito no papel e o que acontece no chão de fábrica, no campo, nas casas de família e nas ruas.
A lista de violações é extensa e interdepende:
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Exploração Laboral: Trabalhadores rurais submetidos a jornadas exaustivas, condições degradantes, vigilância armada e dívidas fraudulentas que os prendem ao local de trabalho. Operários na construção civil e no setor têxtil em situação similar.
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Exploração Sexual e Criminal: Mulheres, meninas e meninos forçados à prostituição, muitas vezes em contextos de tráfico humano. O recrutamento de jovens pelo crime organizado, sob coação e violência, também é apontado como uma forma de escravidão contemporânea.
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Servidão Doméstica: Majoritariamente mulheres, muitas vezes migrantes internas ou de países vizinhos, trabalhando em residências em regime de confinamento, sem remuneração justa, jornada definida ou direito a folgas.
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Trabalho e Casamento Infantil: Crianças e adolescentes privados de sua infância e educação, forçados a trabalhar para complementar a renda familiar ou entregues a casamentos precoces, perpetuando ciclos de pobreza e falta de oportunidade.
A Normalização da Exploração
O alerta de que a exploração foi “normalizada na sociedade” é talvez o aspecto mais perigoso. Significa que, em certa medida, parte da população brasileira se acostumou a ver certas formas de injustiça como “naturais”. A ideia de que “trabalho duro” justifica condições desumanas, ou a invisibilidade do trabalho doméstico mal remunerado, são sintomas dessa normalização. Combater a escravidão moderna, portanto, não é apenas uma tarefa para auditores fiscais e juízes, mas um desafio cultural. É necessário um enfrentamento às estruturas mentais que ainda aceitam a hierarquização de vidas humanas.
O Caminho à Frente
As conclusões do Relator Especial da ONU não devem ser vistas como uma simples crítica, mas como um chamado urgente à ação. Elas indicam que as políticas atuais, embora bem-intencionadas, são insuficientes. É preciso investir mais em fiscalização, mas também em educação, em geração de renda nas comunidades vulneráveis e no fortalecimento da justiça do trabalho. É fundamental atacar as causas raízes: a pobreza extrema, a desigualdade social profunda e o racismo estrutural que tornam certos grupos mais suscetíveis à exploração.
O relatório de 2025 serve como um espelho. Ele reflete um Brasil que, mesmo com todos os seus instrumentos de combate, ainda não conseguiu romper definitivamente com as correntes de um passado escravocrata que teima em se manifestar no presente. Reconhecer essa realidade é o primeiro e mais difícil passo para, de fato, superá-la. A escravidão moderna não é um fantasma do passado; é uma chaga presente que exige resposta imediata, coragem política e uma mudança profunda na consciência coletiva.