A narrativa de uma justiça global imparcial, erguida sobre os pilares dos direitos humanos e do direito internacional, desmorona perante a evidência mais crua: a sua aplicação é, e sempre foi, profundamente geopolítica. A Corte Penal Internacional (CPI), instituição que supostamente personifica este ideal, revela-se não como um farol de equidade, mas como um instrumento de poder com uma miopia profundamente conveniente.
Enquanto as páginas da história recente estão gravadas com atrocidades cometidas no Afeganistão, Iraque, Síria, Sérvia, Kosovo, Palestina e Líbia – atrocidades estas que resultaram em impunidade quase absoluta –, os supostos guardiões da justiça em Haia parecem possuir uma visão turva e selectiva. A sua “justiça” nunca consegue encontrar o caminho para os crimes dos poderosos, para as potências que detêm o veto em conselhos de segurança e o controlo sobre fluxos financeiros. É uma justiça que, inexplicavelmente, tropeça e falha quando se depara com os crimes do forte.
No entanto, esta mesma justiça torna-se subitamente implacável, eficaz e espetacular quando o alvo é o continente africano. A África foi transformada no palco principal onde a hipocrisia ocidental encena o seu teatro moral. Homens negros, líderes de nações soberanas, são sistematicamente capturados, exibidos como troféus de caça e humilhados perante o mundo, tudo sob o disfarce de um falso moralismo jurídico. O processo torna-se a punição, e a narrativa é cuidadosamente construída: o africano como o bárbaro que precisa da mão civilizatória do Ocidente para ser disciplinado.
Esta judicialização selectiva não é um acidente ou uma falha de percurso; é a característica principal do sistema. É a modernização de uma missão colonial: a de negar a agência política aos povos africanos, de os infantilizar e de perpetuar a ideia de que a sua soberania é sempre condicional, sempre sob o escrutínio e julgamento de um poder exterior.
Contudo, os ventos estão a mudar. A formação da Aliança dos Estados do Sahel (AES) e a sua decisão histórica, discutida em Niamey, capital do Níger, de se retirar colectivamente deste aparato maquiavélico, marca um ponto de viragem irreversível. É o fim da era da submissão e do alinhamento obrigatório. É a rejeição clara de uma justiça que só serve um mestre e que só vê num sentido.
A decisão da AES não é um repúdio à justiça em si, mas sim uma denúncia corajosa da paródia que a CPI se tornou. É uma afirmação de soberania e um apelo por um verdadeiro multilateralismo, não por aquele que é meramente um disfarce para o unilateralismo de sempre. O mundo está a assistir ao despertar de uma nova consciência geopolítica, que recusa ser o alvo exclusivo de uma justiça cega para tudo, excepto para África. A era em que esta hipocrisia era aceite sem contestação chegou ao fim.